quinta-feira, 26 de julho de 2012

Princesa Schabat - Heinrich Heine


Queridos, desta vez trago-vos um poema de Heinrich Heine traduzido para o Português por André Vallias, extraído do livro “Heine hein?: poeta dos contrários”, da Editora Perspectiva, magnífica compilação bilíngüe da obra do autor, que também traz alguns ensaios dele, no qual Heine personifica o rito do Schabat em uma princesa, e descreve cenas típicas da religiosidade e da visão de mundo judaica.


Vale lembrar que o poeta e escritor Heinrich Heine (1797-1856) nasceu e viveu na Alemanha e é até hoje lembrado como sinônimo da intelectualidade de sua época, principal figura do Romantismo alemão, e teve inúmeros poemas musicados por compositores como Schumann e Schubert, mas nunca negou suas raízes na cultura judaica, que com freqüência aludia em sua obra. Excelente exemplo disso é justamente o poema Prinzessin Sabbath (Princesa Schabat) de 1851 que apresentarei aqui.

Há algumas palavras que podem soar desconhecidas, para tal no final há o glossário, extraído também do referido livro. A pintura que ilustra o poema é "A favorita", de Leon-François Comerre

Essa postagem foi idéia da minha querida amiga Mariana Cabo, e dedico a postagem a ela!

Espero que apreciem!

Princesa Schabat (1851) – Heinrich Heine

Vê-se em fábulas da Arábia
Certo príncipe encantado
Retomar a bela forma
Que o feitiço lhe roubara:

Eis que o monstro cabeludo
Volta a ser filho o rei;
Bem-vestido, deslumbrante,
Toca flauta, apaixonado.

Mas a mágica tem prazo,
E, assistimos, de repente,
Sua alteza reassumir
A monstruosidade antiga.

Príncipe de sina igual
É o herói dessa canção:
Israel, que a bruxa má
Metamorfoseou em cão.

Cão de idéias vira-latas,
Perambula na sarjeta
Das ruelas, para ser
Molestado por moleques.

Mas na sexta-feira à tarde,
Nos minutos do crepúsculo,
Cai o encanto, e aquele cão
Recupera a humanidade.

Homem de emoções humanas,
Coração, cabeça erguidos,
Em traje festivo adentra
A morada de seu pai.

“Saudações, casa paterna,
Majestosa e tão querida!
Tenda de Jacó, pilares
Santos, beijai minha boca!”

Pelo corredor ecoa
Um murmúrio, um tear;
Invisível o anfitrião
Ofegando na calada.

Quieto! Só um senescal
(Zelador da sinagoga)
Anda para cima e para baixo,
Acendendo as lamparinas.

Chamas de ouro que consolam,
Como brilham e tremulam!
Candelabros também fulgem
Orgulhosos no almemor

Ante a arca, em que a Torá
É guardada e protegida
Por belíssima cortina,
Toda ornada de pedrinhas...

Lá no púlpito, o cantor
Da congregação se eleva:
Um baixinho que se exibe
Com sua capinha preta.

Para mostrar a mão tão branca
Faz afagos na garganta,
Põe o indicador na têmpora,
Na goela o polegar.

Gargareja de mansinho,
Pra aquecer a voz e enfim
Brada altissonante: Le-
Khá Dodi, Likrat Kalá!

Lekhá Dodi – Vem, amado,
Que tua noiva já te espera:
Ela removeu o véu
Do semblante envergonhado!

Este lindo epitalâmio
Foi composto pelo grande
E famoso trovador
Dom Iehudá há-Levi.

Na canção é festejado
O conúbio de Israel
Com a Princesa Schabat,
Por alcunha “A Silenciosa”.

A princesa é flor e pérola
De beleza; nem sequer
A Rainha de Sabá
A igualou em formosura.

Esta, aquela aristocrata
Da Etiópia que almejou
Destacar-se pelo espírito,
E acabou dando nos nervos.

Ora, a Princesa Schabat
É de fato a encarnação
Da quietude, tem horror
A disputas e debates.

E tampouco ela aprecia
A paixão declamatória,
Esse pathos que se inflama
Com cabelos desgrenhados.

Quieta e recatada, guarda
Suas tranças no turbante;
Olhos mansos de gazela,
Tão esguia quanto a murta.

Ao amado ela permite
Tudo, menos o tabaco...
“Meu amado, hoje ninguém
Vai fumar porque é Schabat

Em compensação eu vou
Preparar-te para o almoço
Acepipe que é divino-
Hoje comerás um cholent

Cholent, divinal centelha,
Filha que nasceu no Elísio!
Assim cantaria Schiller,
Se provasse o Petisco.

Cholent é o manjar dos Céus,
Foi o próprio Deus Senhor
Que passou para Moisés
A receita no Sinai.

Naquela mesma montanha
Onde também revelou
A doutrina e os mandamentos
Numa nuvem de esplendor.

Cholent, ambrosia koscher
Do Deus uno e verdadeiro,
É o maná do paraíso,
E, com ele comparado

É tão só uma porcaria
Dos diabos a ambrosia
Que na Grécia os simulacros
Do Capeta compartilham.

Quando come a iguaria,
Nosso Príncipe se acende...
Alegre, desabotoa
A camisa e vai dizendo:

“Porventura ouço o Jordão?
Ouço as fontes murmurando
Pelo oásis de Beth-El,
Refrigério dos camelos?

Ouço os sinos do rebanho?
Ouço ovelhas bem gordinhas
Que o pastor tange do monte
Gilead, ao pôr-do-sol?”

Mas o lindo dia esvai-se;
Já sombreia com as pernas
Da negrura a hora vil
Do feitiço – Nosso príncipe

Sente o coração gelar
Sob as garras da magia;
Dissemina-se na entranha
A transmutação canina.

A princesa lhe oferece,
Num estojo de ouro, a mirra.
Ele a inala devagar...
Para alegrar o seu nariz.

Ela lhe serve na taça
Um licor de despedida...
Sôfrego, numa tragada
Ele o sorve. E algumas gotas

Sobre a mesa então derrama;
No molhado ele mergulha
Uma vela acesa: a chama
Chia aí – vira fumaça.

Glossário:
Almemor: espécie de púlpito, na sinagoga onde se lê a Torá
Iehudá há-Levi (1080-1140): médico, filósofo e poeta judeu nascido em Toledo
Cholent: prato da culinária judaica, espécie de cozido ou feijoada, com ingredientes variados- feito para ser comido no Schabat; seu preparo se inicia na véspera, em fogo brando para que não precise de intervenção, o que violaria a proibição de cozinhar no dia santo.
Koscher: do hebraico “próprio”; comida preparada segundo as leis alimentares do judaísmo

Observação:
Na estrofe :
Cholent, divinal centelha,
Filha que nasceu no Elísio!
Assim cantaria Schiller,
Se provasse o Petisco.”,
o autor usa da intertextualidade com o poema Ode an die Freude do poeta Friedrich von Schiller a famosa Ode à Alegria musicada por Ludwig van Beethoven na 9ª Sinfonia, que diz:
Alegria, divinal centelha,
Filha que nasceu no Elísio!”

2 comentários:

  1. Que maravilhoso! Todá rabá, chamudá!
    Muito obrigada, querida Carol!
    Fiquei muito feliz! :)

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  2. D'nada!
    Se Heine a conhecesse teria dedicado esse poema a você!!! <3

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