quarta-feira, 27 de abril de 2011

A psicanálise em Dostoievski I: O escritor


O escritor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoievski (1821-1881) assusta e fascina leitores há maís de um século. Assusta os menos chegados a livros espessos pois os grandes romances do escritor o são em duas acepções: grandiosos e com elevado número de páginas. Já em relação à fascinação, podemos passar infinitas postagens dissertando a respeito.

Seu estilo chiaroscuro, definido canonicamente como Realismo Psicológico (tal qual nosso titânico Machado de Assis) não se limita a escolas literárias. Sua literatura aborda o homem de seu tempo e trata de sua problemática social (Miséria material e moral, crime, prostituição), ideológica (niilismo, ateísmo, suicídio), psicológica (sonhos, delírios, pensamentos sombrios, obsessão, loucura) e até patologias (tuberculose, epilepsia, febres). Quanto à questão das patologias, a tuberculose durante o século XIX na era pré-antibiótica era uma doença temida, letal e assustadoramente comum, e é descrita de forma precisa nas obras de Dostoievski. O escritor sofria de epilepsia, e retrata fielmente a doença em diversos personagens, como Smierdiakov (Os irmãos Karamazov), Michkin (O idiota), Múrin (A senhoria), Stavroguin (Os demônios).

A principal preocupação de Dostoievski é desnudar a psique de cada personagem que cria, mostrando seus conflitos existenciais e lutas interiores, coexistência de bondade e sordidez no mesmo ser, aniquilando perspectivas maniqueístas típicas do Romantismo, pintando o fantástico da realidade através de personagens humanos -demasiado humanos- a ponto de exercerem elevado poder catártico sobre o leitor.

A atemporalidade da obra dostoievskiana é impressionante. Narrativas de uma distante e pitoresca Rússia czarista dos anos de 1860 são perfeitamente transponíveis a outros cenários e épocas devido à atualidade das questões abordadas em termos morais, psicológicos e existencialistas.

O escritor teve reconhecimento ainda em vida, e seu romance Memórias do subsolo, que tem alto teor psicológico e filosófico foi aclamado por nomes como Friedrich Nietzsche, Maxim Górki e Otto Maria Carpeaux:

Nietzsche em carta a Overbeck: "Um achado fortuito numa livraria: Memórias do subsolo, de Dostoievski (...) A voz do sangue (como denominá-lo de outro modo?)Fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limites.”

Gorki em anotação: “Para mim todo Nietzsche está em Memórias do subsolo. Neste livro –e até hoje não o sabem ler- se dá para toda a Europa a fundamentação do Niilismo e do Anarquismo. Nietzsche é mais grosseiro que Dostoievski.”

Carpeaux em “Ensaios de interpretação dostoievskiana”: “Existem poucos escritores cuja obra tenha sido tão tenazmente mal-compreendida como a de Dostoievski. Dostoievski é, senão o maior, decerto o mais poderoso escritor do século XIX; ou do século XX, pois sua obra constitui o marco entre dois séculos de literatura. Literariamente, tudo o que é pré-dostoievskiano é pré-histórico; ninguém escapa à sua influênci subjulgadora, nem sequer os mais contrários”

Dostoievski já prenuncia elementos da psicanálise freudiana em suas obras, o que será elucidado e desenvolvido tematicamente nas próximas postagens desta série. Em Niétotchka Niezvanova, romance pouco conhecido pelo público leitor, encontramos por exemplo um prenúncio do Complexo Edipiano e das teorias acerca da sexualidade infantil e humana.

O objetivo dessa primeira postagem é, portanto situar a obra dostoievskiana e caracterizá-la, apresentando uma panorama dela ao leitor. Obviamente recomendo fortemente a leitura de Dostoievski. Quais obras? TODAS.

Saudações, e até breve.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Das Dreimäderlhaus: filme alemão de 1958


O filme Das Dreimäderlhaus (A casa das três meninas), sob direção de Ernst Marischka é baseado na opereta de mesmo nome que teve seu début no ano de 1916, com música de Franz Schubert e Heinrich Berté (1857-1924) com libretto de Alfred Maria Willner e Heinz Reichert inspirado no romance Schwammerl (1912) de Rudolf Hans Bartsch.

É um filme interessante, com belos cenários, cenas delicadas, figurinos e penteados minuciosamente fidedignos à época em que se passa o filme (c. 1813-15), não chega a ser um musical davvero, mas é permeado por belas canções (Lieder) de Schubert e canções vienenses. Apesar de não ser biograficamente fiel a Schubert, encontramos no filme um belo quadro da sociedade vienense da primeira metade do século XIX com sua fervilhante atmosfera intelectual e artística.

O ator Karlheinz Böhm nos revela um Schubert tímido, belo, introspectivo e workaholic, além disso com um nobre coração, pois renuncia seu amor pela graciosa Hannerl (Johanna Matz) em nome de sua amizade com o cantor Schober (Rudolf Schock) que também a ama. O filme exalta o valor da amizade, como podemos observar logo no início, na segunda cena, na qual seus quatro inseparáveis amigos ―Schober, Schwind (Helmut Lohner), Kupelwieser (Albert Rueprecht) e Mayerhofer (Erich Kunz)― articulam para que Diabelli (Richard Romanowsky), editor musical conheça as obras de Schubert. Esse quarteto de amigos nos dá idéia das schubertiades, serões musicais onde se reuniam Shubert e seus amigos, como retratado no desenho de Moritz Von Schwind, pintor e personagem do filme que vemos abaixo.

Um desses amigos de Schubert, Mayerhofer é interpretado pelo aclamado barítono Erich Kunz, dono de magnífica voz e especial talento para papéis mozartianos e de operetas, sendo conhecido principalmente por sua interpretação como Papageno no Singspiel ‘Die Zauberflöte’ (A Flauta Mágica), de Mozart, (que tenho a sorte de possuir uma gravação de Herr Kunz como Papageno, para deleite de meus ouvidos!). Em várias ocasiões Kunz nos presenteia com sua bela voz cantando belas canções e com seu talento para papéis cômicos que é bem aproveitado no filme em seu personagem Mayerhofer.

Deve-se notar também que Rudolf Schock, que interpreta Schrober no filme também é cantor profissional, um tenor de cristalina voz e muito em voga na época. É maravilhoso ouvir tão bela voz aliada a tão belas melodias! A potência e graça de seu timbre podem ser percebidas durante todo o filme, atingindo seu apogeu durante a interpretação da canção Ungeduld.

Como é de se esperar, a parte musical do filme é esplêndida. Porém, devo observar que a história por trás das composições de pelo menos duas das canções é romanceada e não se conecta à realidade dos fatos.

1) A Serenata (Ständchen - Leise flehen meine Lieder) que Schubert se inspira ao passar pela casa de Hannerl e ouvi-la tocar uma de suas sonatas para piano não foi “a primeira canção de amor composta por Schubert” como seus amigos constatam, mas faz parte de um ciclo de canções (Lieder Zyclus) Schwanengesang (O canto do cisne).

2) A canção que Schubert compõs para declarar-se a Hannerl e foi interpretada por Schober, não foi composta para esse fim. A canção denominada Ungeduld und Stolz (Ciumento e Orgulhoso) faz parte do famoso ciclo de canções de Schubert Die Schöne Müllerin (A bela moleira) correspondendo à sétima canção das vinte totais. No início do filme quando Diabelli tranca o cantor da corte Johann Vogl (Ebehard Wächter) para que este cante um Lied de Schubert, trata-se da oitava canção do ciclo d’A bela moleira, Morgengruß (Saudação matinal).

Há paralelamente a presença do compositor Ludwig van Beethoven (Ewald Balser) desde a primeira cena, na qual Schubert assiste a uma apresentação de um concerto para piano e orquestra interpretada por um Beethoven com a audição já bastante comprometida, porém sem perder sua capacidade criativa. Sua única ópera, Fidelio (a qual já escrevi uma resenha por aqui), é citada e podemos assistir ao seu último ensaio antes da reestréia da ópera, junto a Kupelwieser, que foi assisti-la. Beethoven rege o quarteto Mir ist so Wunderbar (É tão maravilhoso para mim) da ópera.

Um filme raro, pouco conhecido e encantador!

Eis algumas imagens do filme:


Schubert com uma bandeja de frango num almoço ao ar livre com Schober, Mayerhofer, Kupelwieser, Schwind, Franzi e Kathi.

Franz Schubert e Moritz von Schwind, que trabalha pintando a casa de Beethoven.


Schober, Schubert, Schwind, Kupelwieser e Mayerhofer deixaram o Goulasch queimar, pois se distraíram cantando e agora tentam recuperá-lo.


Hannerl, Schober e uma de suas irmãs.


Schubert dá a Hannerl um ramo de lilás durante almoço ao ar livre com Hannerl, Hederl, Heiderl (suas irmãs), Franzi, Kathi, Kupelwieser, Schober, Schwind e Mayerhofer.


Schubert sendo impedido de tocar suas sinfonias por Diabelli, que é um entusiasta de suas canções e prefere que Schubert toque as canções com o barítono Vogl.


Johann Michel Vogl, Anton Diabelli e Franz Schubert cumprimentam-se após o sucesso da apresentação dos Lieder no palácio dos Esterházy.


Frau Tscholl despede-se de suas recém casadas filhas Heiderl e Hederl junto à governanta.


Herr Tscholl pai de Hannerl cumprimenta Schubert, professor de piano de Hannerl.

Hannerl vestida de noiva para casar-se com Schober e sua mãe, Frau Tscholl.

Hannerl e Schubert.

Assistir ao trailer de Dreimäderlhaus no YouTube


quarta-feira, 13 de abril de 2011

Pin-up girls II - Pulp fiction

Trago-vos aqui algumas obras de artistas dos anos 50 que trabalharam com o gênero Pulp Fiction

Walter Baumhofer



Rudolph Berlaski



Victor Prezio



George Gross



'H' is for heroin, de Rafael de Soto

terça-feira, 5 de abril de 2011

Concepções de Goethe acerca do mundo II: Werther, sua época, sua Weltanschauung


Nesta segunda postagem da série Concepções de Goethe acerca do mundo, nosso assunto será o romance epistolar ‘Os sofrimentos do jovem Werther’, de Goethe Uma das mais famosas obras do escritor Wilhelm Wolfgang von Goethe, Die Leiden des jungen Werthers (Os sofrimentos do jovem Werther) é muitas vezes interpretado de forma simplista, focando muito mais no Liebeschmerz (sofrimento de amor) do protagonista do que em seu Weltanschauung (visão de mundo).

Venho a expressar minha opinião acerca daquilo que muitas vezes deixado de lado durante uma leitura menos atenta da obra, embasando minhas teorias por meio de excertos do livro.



1) Werther é um andarilho (Wanderer)


Ad principium, Werther encarna um tipo caro ao Romantismo Alemão, a figura do Wanderer (algo que podemos traduzir como viandante, caminhante, andarilho), que podemos encontrar em quadros como no quadro ‘Viandante sobre um mar de névoa’ (Der Wanderer uber Nebelsee) do pintor Caspar David Friedrich (pintura abaixo), em ciclos de canções como Winterreise e Die Schöne Müllerin de Franz Peter Schubert, em poemas de Heinrich Heine p. ex. Esse personagem é representado pelo jovem de compleição frágil e delicada, de filosofia puramente Romântica, melancólico, contemplativo e impressionável, bastante propenso à loucura e delírios, mas acima de tudo um idealista, capaz de se sacrificar por seus ideais, que percorre longas distâncias em viagem e entra em contado com a inspiradora natureza selvagem alemã, suas paisagens inebriantes,seu povo, longe do ambiente urbano, numa atitude de fugere urbem (cara aos Neoclássicos p. ex.), buscando aventuras e alimento para sua alma sensível.


Carta de 16/06/1772

“Sim, sou um simples andarilho, um viajante que percorre a terra! E vocês, o que são?”


Carta de 04/05/1771

“A cidade, em si é desagradável, mas, nos arredores a natureza é incrivelmente bela.”



2) Descrição da cor local – paisagens, emoções daí vivenciadas


Werther nos descreve com minúcia os locais por onde passa: as belas paisagens alemãs, os habitantes locais e as histórias que o povo lhe conta, suas relações com as pessoas, mas sempre misturando uma visão objetiva, real, com uma visão subjetiva, nostálgica e pessoal, como no trecho a seguir, excelente exemplo disso:


Carta de 09/05/1772

“Com toda a devoção de um peregrino, visitei o lugar em que nasci e muitos sentimentos e impressões invadiram-me.”

(...)

“Diante de mim as montanhas que tantas vezes me encantaram. Eu podia passar horas e horas nesse lugar desejando transpor aquelas alturas, com o pensamento perdido no seio dos bosques e dos vales, que se mostravam a meus olhos na serena luz do fim da tarde.”



3) O Romance é Epistolar


O fato de se tratar de um romance epistolar a um amigo íntimo -Wilhelm- permite que Werther descreva claramente sua opinião acerca dos lugares por onde anda, analise personagens com as quais esbarra, sem o véu da hipocrisia e das convenções sociais expressando-se com sinceridade e transparência como se verá nos seguintes itens.


4) Análise da sociedade de classes de sua época


Tomando o item anterior como partida, Werther faz um retrato vivo e cru da burguesia e da nobreza de sua época, não poupando termos e comentários ácidos para descrever a hipocrisia reinante nos frívolos salões de sua época. Percebe-se também a atitude ambígua de Werther quanto à sua própria posição social, que lhe proporciona privilégios, mas é vista com desdém e afastamento pelos nobres e com desconfiança pela gente humilde do povo. Não só por essas características mas por aquelas do protótipo Wanderer nos demonstra que esse tipo de herói apesar de burguês não segue a moral burguesa, com seu ponto de vista objetivo e prático. Ele vai contra isso, pois a moral burguesa é pequena demais para sua alma ampla e sonhadora, idealista. A subjetividade atinge o máximo quando o nosso personagem-título comete o suicídio, sacrificando-se em nome de seu ideal - o amor por Charlotte, que é casada. Em relação a essa temática temos inúmeros exemplos:


Carta de 15/05/1771

“As pessoas simples deste lugar já me conhecem e gostam de mim, particularmente as crianças. No início, quando me aproximava delas, fazendo-lhes amistosamente uma pergunta trivial, alguns julgavam que eu queria me divertir-me às suas custas e me respondiam grosseiramente. Não me zanguei com isso, mas senti vivamente o que já muitas vezes observara: as pessoas de alta posição social conservam habitualmente uma fria distância da gente do povo; e depois há os levianos e maldosos, que fingem descer até os humildes para, com isso, melhor feri-los.”

“Bem sei que não somos iguais nem poderíamos sê-lo; mas acho que todo aquele que julga ser necessário afastar-se do que se chama povo para fazer-se respeitar é tão censurável quanto o covarde que se esconde do inimigo por medo de ser derrotado”


Nestes trechos quando fala a respeito do Embaixador, para quem trabalhou por um tempo, seu amargor anti-aristocrático torna-se evidenciado:


Carta de 24/12/1771

“O embaixador tem em causado muitos aborrecimentos, como eu já havia previsto. É o tolo mais exigente do mundo; anda de passinhos e é minucioso como uma solteirona; nunca está contente consigo mesmo e, por conseguinte, ninguém pode jamais contentá-lo. (...) É um suplício ter de trabalhar com esse homem.”

(...)

“E a miséria exemplar, o tédio que reina entre a gente estúpida que se vê por aqui! E a mania da posição social: espiam-se mutuamente, apenas para encontrar uma oportunidade de passar a perna no outro. (...) Não posso compreender como o gênero humano tem suficiente falta de senso para prostituir-se tão vulgarmente.”

(...)

“O que mais me aborrece é a inexorável condição burguesa. Sei, tão bem quanto os outros, como a diferença de classes é necessária, e quantas vantagens me proporciona: as gostaria que ela não viesse fechar meu caminho, no momento em que eu poderia ainda gozar nesse mundo um pouco de alegria, um átimo de felicidade.”


Carta de 15/03/1772


“(...) Ontem fui almoçar na casa dele: era justamente o dia em que se recebe a alta sociedade, a flor da nobreza.”

“(...) Chega a nobre senhora de S., com o senhor seu marido e a estúpida de sua filha, de peito pequeno e um espartilho ridículo afinando-lhe a cintura, ao passarem por mim, adotaram um ar desdenhoso e, como tenho por essa espécie de gente profunda antipatia, decidi ir-me embora.”



5) O perfeito-burguês: Albert


O marido de Lotte é o burguês prático e engrenado na sociedade de fins do sécuo XVIII. Ama sua esposa, dedica-se ao trabalho e resolução de objetivos práticos, não perdendo tempo com divagações e sentimentos supérfluos. Sua maneira de ver o mundo é direta e utilitária.

Podemos inclusive identificar o antagonista, o enantiômero, o Werther quiral, espelhado: Albert, o noivo e, mais tarde marido de Lotte. Não é à toa que Werther pede a arma a ser usada no atentado contra sua própria vida a ninguém menos que Albert. É este o verdadeiro ‘antagonista’ do romance, pois ele se interpõe entre Werther e Lotte impedindo a realização dos desejos de ambos, o que culmina com a impossibilidade e negação da possibilidade de realização desse amor, mais por impedimento moral burguês do que por falta de vontade de algum dos dois de viver plenamente esse amor.


Carta de 29/07/1772

"E ousaria dizê-lo? Por que não, Wilhelm? Comigo ela seria mais feliz do que com ele. Oh! Albert não é o homem capaz de satisfazer todos os desejos daquele anjo. A ele falta certa sensibilidade, falta... entenda como quiser... Quando leem juntos alguns trechos de um livro particularmente amado, o coração dele não bate em sintonia como o dela, como quando eu leio com Lotte esse mesmo livro e nossos corações pulsam como um só; e em centenas de outras circunstâncias, como quando exprimimos nossos sentimentos sobre o comportamento de outra pessoa."


Algumas ilustrações do livro para deleitar os olhos dos senhores: