Queridos, desta vez trago-vos
um poema de Heinrich Heine traduzido para o Português por André Vallias,
extraído do livro “Heine hein?: poeta dos contrários”, da Editora Perspectiva,
magnífica compilação bilíngüe da obra do autor, que também traz alguns ensaios
dele, no qual Heine personifica o rito do Schabat em uma princesa, e descreve
cenas típicas da religiosidade e da visão de mundo judaica.
Vale lembrar que o poeta e
escritor Heinrich Heine (1797-1856) nasceu e viveu na Alemanha e é até hoje
lembrado como sinônimo da intelectualidade de sua época, principal figura do
Romantismo alemão, e teve inúmeros poemas musicados por compositores como
Schumann e Schubert, mas nunca negou suas raízes na cultura judaica, que com
freqüência aludia em sua obra. Excelente exemplo disso é justamente o poema Prinzessin Sabbath (Princesa Schabat) de
1851 que apresentarei aqui.
Há algumas palavras que podem
soar desconhecidas, para tal no final há o glossário, extraído também do
referido livro. A pintura que ilustra o poema é "A favorita", de Leon-François Comerre
Essa postagem foi idéia da
minha querida amiga Mariana Cabo, e dedico a postagem a ela!
Espero que apreciem!
Princesa Schabat
(1851) – Heinrich Heine
Vê-se em fábulas da Arábia
Certo príncipe encantado
Retomar a bela forma
Que o feitiço lhe roubara:
Eis que o monstro cabeludo
Volta a ser filho o rei;
Bem-vestido, deslumbrante,
Toca flauta, apaixonado.
Mas a mágica tem prazo,
E, assistimos, de repente,
Sua alteza reassumir
A monstruosidade antiga.
Príncipe de sina igual
É o herói dessa canção:
Israel, que a bruxa má
Metamorfoseou em cão.
Cão de idéias vira-latas,
Perambula na sarjeta
Das ruelas, para ser
Molestado por moleques.
Mas na sexta-feira à tarde,
Nos minutos do crepúsculo,
Cai o encanto, e aquele cão
Recupera a humanidade.
Homem de emoções humanas,
Coração, cabeça erguidos,
Em traje festivo adentra
A morada de seu pai.
“Saudações, casa paterna,
Majestosa e tão querida!
Tenda de Jacó, pilares
Santos, beijai minha boca!”
Pelo corredor ecoa
Um murmúrio, um tear;
Invisível o anfitrião
Ofegando na calada.
Quieto! Só um senescal
(Zelador da sinagoga)
Anda para cima e para baixo,
Acendendo as lamparinas.
Chamas de ouro que consolam,
Como brilham e tremulam!
Candelabros também fulgem
Orgulhosos no almemor
Ante a arca, em que a Torá
É guardada e protegida
Por belíssima cortina,
Toda ornada de pedrinhas...
Lá no púlpito, o cantor
Da congregação se eleva:
Um baixinho que se exibe
Com sua capinha preta.
Para mostrar a mão tão branca
Faz afagos na garganta,
Põe o indicador na têmpora,
Na goela o polegar.
Gargareja de mansinho,
Pra aquecer a voz e enfim
Brada altissonante: Le-
Khá Dodi, Likrat
Kalá!
Lekhá Dodi –
Vem, amado,
Que tua noiva já te espera:
Ela removeu o véu
Do semblante envergonhado!
Este lindo epitalâmio
Foi composto pelo grande
E famoso trovador
Dom Iehudá há-Levi.
Na canção é festejado
O conúbio de Israel
Com a Princesa Schabat,
Por alcunha “A Silenciosa”.
A princesa é flor e pérola
De beleza; nem sequer
A Rainha de Sabá
A igualou em formosura.
Esta, aquela aristocrata
Da Etiópia que almejou
Destacar-se pelo espírito,
E acabou dando nos nervos.
Ora, a Princesa Schabat
É de fato a encarnação
Da quietude, tem horror
A disputas e debates.
E tampouco ela aprecia
A paixão declamatória,
Esse pathos que
se inflama
Com cabelos desgrenhados.
Quieta e recatada, guarda
Suas tranças no turbante;
Olhos mansos de gazela,
Tão esguia quanto a murta.
Ao amado ela permite
Tudo, menos o tabaco...
“Meu amado, hoje ninguém
Vai fumar porque é Schabat
Em compensação eu vou
Preparar-te para o almoço
Acepipe que é divino-
Hoje comerás um cholent”
Cholent,
divinal centelha,
Filha que nasceu no Elísio!
Assim cantaria Schiller,
Se provasse o Petisco.
Cholent é o
manjar dos Céus,
Foi o próprio Deus Senhor
Que passou para Moisés
A receita no Sinai.
Naquela mesma montanha
Onde também revelou
A doutrina e os mandamentos
Numa nuvem de esplendor.
Cholent,
ambrosia koscher
Do Deus uno e verdadeiro,
É o maná do paraíso,
E, com ele comparado
É tão só uma porcaria
Dos diabos a ambrosia
Que na Grécia os simulacros
Do Capeta compartilham.
Quando come a iguaria,
Nosso Príncipe se acende...
Alegre, desabotoa
A camisa e vai dizendo:
“Porventura ouço o Jordão?
Ouço as fontes murmurando
Pelo oásis de Beth-El,
Refrigério dos camelos?
Ouço os sinos do rebanho?
Ouço ovelhas bem gordinhas
Que o pastor tange do monte
Gilead, ao pôr-do-sol?”
Mas o lindo dia esvai-se;
Já sombreia com as pernas
Da negrura a hora vil
Do feitiço – Nosso príncipe
Sente o coração gelar
Sob as garras da magia;
Dissemina-se na entranha
A transmutação canina.
A princesa lhe oferece,
Num estojo de ouro, a mirra.
Ele a inala devagar...
Para alegrar o seu nariz.
Ela lhe serve na taça
Um licor de despedida...
Sôfrego, numa tragada
Ele o sorve. E algumas gotas
Sobre a mesa então derrama;
No molhado ele mergulha
Uma vela acesa: a chama
Chia aí – vira fumaça.
Glossário:
Almemor:
espécie de púlpito, na sinagoga onde se lê a Torá
Iehudá há-Levi
(1080-1140): médico, filósofo e poeta judeu nascido em Toledo
Cholent: prato
da culinária judaica, espécie de cozido ou feijoada, com ingredientes variados-
feito para ser comido no Schabat; seu preparo se inicia na véspera, em fogo
brando para que não precise de intervenção, o que violaria a proibição de
cozinhar no dia santo.
Koscher: do
hebraico “próprio”; comida preparada segundo as leis alimentares do judaísmo
Observação:
Na estrofe :
“Cholent, divinal centelha,
Filha que nasceu no Elísio!
Assim cantaria Schiller,
Se provasse o Petisco.”,
o autor usa da
intertextualidade com o poema Ode an die
Freude do poeta Friedrich von Schiller a famosa Ode à Alegria musicada por
Ludwig van Beethoven na 9ª Sinfonia, que diz:
“Alegria, divinal centelha,
Filha que nasceu no Elísio!”