Nesta segunda postagem da série Concepções de Goethe acerca do mundo, nosso assunto será o romance epistolar ‘Os sofrimentos do jovem Werther’, de Goethe Uma das mais famosas obras do escritor Wilhelm Wolfgang von Goethe, Die Leiden des jungen Werthers (Os sofrimentos do jovem Werther) é muitas vezes interpretado de forma simplista, focando muito mais no Liebeschmerz (sofrimento de amor) do protagonista do que em seu Weltanschauung (visão de mundo).
Venho a expressar minha opinião acerca daquilo que muitas vezes deixado de lado durante uma leitura menos atenta da obra, embasando minhas teorias por meio de excertos do livro.
1) Werther é um andarilho (Wanderer)
Ad principium, Werther encarna um tipo caro ao Romantismo Alemão, a figura do Wanderer (algo que podemos traduzir como viandante, caminhante, andarilho), que podemos encontrar em quadros como no quadro ‘Viandante sobre um mar de névoa’ (Der Wanderer uber Nebelsee) do pintor Caspar David Friedrich (pintura abaixo), em ciclos de canções como Winterreise e Die Schöne Müllerin de Franz Peter Schubert, em poemas de Heinrich Heine p. ex. Esse personagem é representado pelo jovem de compleição frágil e delicada, de filosofia puramente Romântica, melancólico, contemplativo e impressionável, bastante propenso à loucura e delírios, mas acima de tudo um idealista, capaz de se sacrificar por seus ideais, que percorre longas distâncias em viagem e entra em contado com a inspiradora natureza selvagem alemã, suas paisagens inebriantes,seu povo, longe do ambiente urbano, numa atitude de fugere urbem (cara aos Neoclássicos p. ex.), buscando aventuras e alimento para sua alma sensível.
Carta de 16/06/1772
“Sim, sou um simples andarilho, um viajante que percorre a terra! E vocês, o que são?”
Carta de 04/05/1771
“A cidade, em si é desagradável, mas, nos arredores a natureza é incrivelmente bela.”
2) Descrição da cor local – paisagens, emoções daí vivenciadas
Werther nos descreve com minúcia os locais por onde passa: as belas paisagens alemãs, os habitantes locais e as histórias que o povo lhe conta, suas relações com as pessoas, mas sempre misturando uma visão objetiva, real, com uma visão subjetiva, nostálgica e pessoal, como no trecho a seguir, excelente exemplo disso:
Carta de 09/05/1772
“Com toda a devoção de um peregrino, visitei o lugar em que nasci e muitos sentimentos e impressões invadiram-me.”
(...)
“Diante de mim as montanhas que tantas vezes me encantaram. Eu podia passar horas e horas nesse lugar desejando transpor aquelas alturas, com o pensamento perdido no seio dos bosques e dos vales, que se mostravam a meus olhos na serena luz do fim da tarde.”
3) O Romance é Epistolar
O fato de se tratar de um romance epistolar a um amigo íntimo -Wilhelm- permite que Werther descreva claramente sua opinião acerca dos lugares por onde anda, analise personagens com as quais esbarra, sem o véu da hipocrisia e das convenções sociais expressando-se com sinceridade e transparência como se verá nos seguintes itens.
4) Análise da sociedade de classes de sua época
Tomando o item anterior como partida, Werther faz um retrato vivo e cru da burguesia e da nobreza de sua época, não poupando termos e comentários ácidos para descrever a hipocrisia reinante nos frívolos salões de sua época. Percebe-se também a atitude ambígua de Werther quanto à sua própria posição social, que lhe proporciona privilégios, mas é vista com desdém e afastamento pelos nobres e com desconfiança pela gente humilde do povo. Não só por essas características mas por aquelas do protótipo Wanderer nos demonstra que esse tipo de herói apesar de burguês não segue a moral burguesa, com seu ponto de vista objetivo e prático. Ele vai contra isso, pois a moral burguesa é pequena demais para sua alma ampla e sonhadora, idealista. A subjetividade atinge o máximo quando o nosso personagem-título comete o suicídio, sacrificando-se em nome de seu ideal - o amor por Charlotte, que é casada. Em relação a essa temática temos inúmeros exemplos:
Carta de 15/05/1771
“As pessoas simples deste lugar já me conhecem e gostam de mim, particularmente as crianças. No início, quando me aproximava delas, fazendo-lhes amistosamente uma pergunta trivial, alguns julgavam que eu queria me divertir-me às suas custas e me respondiam grosseiramente. Não me zanguei com isso, mas senti vivamente o que já muitas vezes observara: as pessoas de alta posição social conservam habitualmente uma fria distância da gente do povo; e depois há os levianos e maldosos, que fingem descer até os humildes para, com isso, melhor feri-los.”
“Bem sei que não somos iguais nem poderíamos sê-lo; mas acho que todo aquele que julga ser necessário afastar-se do que se chama povo para fazer-se respeitar é tão censurável quanto o covarde que se esconde do inimigo por medo de ser derrotado”
Nestes trechos quando fala a respeito do Embaixador, para quem trabalhou por um tempo, seu amargor anti-aristocrático torna-se evidenciado:
Carta de 24/12/1771
“O embaixador tem em causado muitos aborrecimentos, como eu já havia previsto. É o tolo mais exigente do mundo; anda de passinhos e é minucioso como uma solteirona; nunca está contente consigo mesmo e, por conseguinte, ninguém pode jamais contentá-lo. (...) É um suplício ter de trabalhar com esse homem.”
(...)
“E a miséria exemplar, o tédio que reina entre a gente estúpida que se vê por aqui! E a mania da posição social: espiam-se mutuamente, apenas para encontrar uma oportunidade de passar a perna no outro. (...) Não posso compreender como o gênero humano tem suficiente falta de senso para prostituir-se tão vulgarmente.”
(...)
“O que mais me aborrece é a inexorável condição burguesa. Sei, tão bem quanto os outros, como a diferença de classes é necessária, e quantas vantagens me proporciona: as gostaria que ela não viesse fechar meu caminho, no momento em que eu poderia ainda gozar nesse mundo um pouco de alegria, um átimo de felicidade.”
Carta de 15/03/1772
“(...) Ontem fui almoçar na casa dele: era justamente o dia em que se recebe a alta sociedade, a flor da nobreza.”
“(...) Chega a nobre senhora de S., com o senhor seu marido e a estúpida de sua filha, de peito pequeno e um espartilho ridículo afinando-lhe a cintura, ao passarem por mim, adotaram um ar desdenhoso e, como tenho por essa espécie de gente profunda antipatia, decidi ir-me embora.”
5) O perfeito-burguês: Albert
O marido de Lotte é o burguês prático e engrenado na sociedade de fins do sécuo XVIII. Ama sua esposa, dedica-se ao trabalho e resolução de objetivos práticos, não perdendo tempo com divagações e sentimentos supérfluos. Sua maneira de ver o mundo é direta e utilitária.
Podemos inclusive identificar o antagonista, o enantiômero, o Werther quiral, espelhado: Albert, o noivo e, mais tarde marido de Lotte. Não é à toa que Werther pede a arma a ser usada no atentado contra sua própria vida a ninguém menos que Albert. É este o verdadeiro ‘antagonista’ do romance, pois ele se interpõe entre Werther e Lotte impedindo a realização dos desejos de ambos, o que culmina com a impossibilidade e negação da possibilidade de realização desse amor, mais por impedimento moral burguês do que por falta de vontade de algum dos dois de viver plenamente esse amor.
Carta de 29/07/1772
"E ousaria dizê-lo? Por que não, Wilhelm? Comigo ela seria mais feliz do que com ele. Oh! Albert não é o homem capaz de satisfazer todos os desejos daquele anjo. A ele falta certa sensibilidade, falta... entenda como quiser... Quando leem juntos alguns trechos de um livro particularmente amado, o coração dele não bate em sintonia como o dela, como quando eu leio com Lotte esse mesmo livro e nossos corações pulsam como um só; e em centenas de outras circunstâncias, como quando exprimimos nossos sentimentos sobre o comportamento de outra pessoa."
Algumas ilustrações do livro para deleitar os olhos dos senhores: