segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Fidelio, a única ópera do “poeta dos sons”

A única ópera de Beethoven reflete a ideologia de uma era: liberdade, luta contra a tirania e o triunfo do amor; ainda impregnada dos ideais do Aufklärung –Iluminismo– que tanto fascinara o compositor quando jovem. É também um divisor de águas sui generis entre a ópera de Mozart e a de Weber pois coexistem elementos clássicos e românticos na obra.


A obra baseou-se em um romance do francês Nicolas Bouilly, Léonore ou L’amour conjugal. A estréia de Fidelio em 1805 no Theater an der Wien foi mal-sucedida: as tropas francesas de Napoleão tinham acabado de ocupar Viena e foram ao teatro apenas uns poucos oficiais, que não gostaram da música pouco convencional do compositor e da mensagem declaradamente política da trama. Entretanto, na sua terceira reestréia, a ópera foi finalmente aceita.


A transcendência dos limites da alma e do subconsciente humano podem ser percebidos através dos cenários escolhidos para a ambientação dos personagens, por exemplo a escura e claustrofóbica masmorra subterrânea na qual Florestan encontra-se. Podemos supor que sendo um prisioneiro político, Florestan percebe-se enclausurado dentro de si mesmo, e devido à ausência de liberdade de expressão vê-se impedido inclusive de pensar, até sua mente está cativa. A obra é repleta de alegorias e simbolismos do gênero.



O libreto consiste na história de Florestan, um jovem nobre, em Sevilha no século XVIII, que foi preso injustamente pelo tirânico diretor da prisão, Don Pizarro. Ao descobrir que Don Fernando, ministro do rei, visitará a prisão e poderá tomar conhecimento das irregularidades por ele cometidas, Pizarro decide matar Florestan. Leonore, esposa de Florestan veste-se como um homem -Fidelio- para salvá-lo, e torna-se ajudante do carcereiro Rocco. Marzelline, filha de Rocco rejeita o amor do jovem Jaquino pois está apaixonada por Fidelio. Quando seu pai o descobre, gosta da idéia e pretende casá-los o mais rápido possível, o que incomoda Leonore/Fidelio. Pizarro ordena que Rocco e Fidelio cavem o túmulo de Florestan. Quando eles chegam à masmorra, Florestan recobra a consciência e Leonore o reconhece, mas seu marido não, por causa de seus trajes masculinos. Pizarro aparece para apunhalar Florestan, mas Leonore saca de um revólver e diz: “Mata primeiro a sua mulher”, revelando sua identidade aos três homens agora surpresos. Nesse momento soa a trombeta anunciando a chegada do ministro, e Pizarro é deposto e preso, Leonore e Florestan finalmente se reencontram e todos os presos políticos são libertos.


Infelizmente é difícil de se encontrar gravações ou mesmo de se assistir ao vivo apresentações dessa chef d’œuvre, mas eu tive a oportunidade de assisti-la no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 2008, o que foi realmente emocionante, pois sempre fui obcecada por Beethoven e sua obra, e Fidelio era “a ópera que eu teria que ouvir antes de morrer” par excellence! Nem acreditei que ela seria apresentada tão perto de mim!


Fiquei encantada ad principium com a magnífica ouverture Fidelio (não confundir com as aberturas Leonore, compostas para versões iniciais da ópera), as árias do 1° ato, o duo de abertura de Jacquino e Marzelline “Jetzt schätzen jetzt sind wir allein ” a da Marzelline “O wär ich schon mit dir vereint”, de Rocco “Hat man nicht auch Gold beineben”, cuja melodia me hipnotizou, e o trio “Gut, sönchen, gut!”. No 2° ato, a Ária de Florestan foi heróica, e o duo com Leonore, “O namenlose Freude”, bravissimo! Apesar de Beethoven não ter seguido em sua linha vocal o bel canto, que já ameaçava roubar a cena da ópera de início do século XIX e seria sucesso sob a pena de Rossini, Bellini e Donizetti, nem o estilo da Grand opéra francesa, que seria sucesso nas mãos de Gounod, Bizet e Meyerbeer, mas seu estilo sui generis, com dissonâncias e harmonias incomuns conquistam o espectador, fazendo-o lembrar de sua obra orquestral, na qual alternavam-se seções de um tom atormentado e heróico com uma calma etérea. Bravo, bravíssimo, Herr Ludwig!


Saudações Beethovenianas!


sábado, 4 de setembro de 2010

Melancholia: uma constante em "O vermelho e o negro" de Stendhal


Melancolia vem do grego μελαγχολία - melagcholía; de μέλας - mélas, "negro" e χολή - cholé, bile.

Esse termo deriva da teoria Hipocrática dos quatro humores: sangüíneo, colérico, melancólico e fleumático, cada um deles eles associa-se a estação do ano, elemento, órgão e características, que para o melancólico são respectivmente: outono, terra baço e frio seco. Acreditava-se que todos os males físicos originavam-se do desequilíbrio entre esses quatro humores.


Durante o Romantismo Byroniano, de Shelley, e Alvares de Azevedo, predominava nas composições poéticas o
spleen, o mal-du-siècle, o tédio inevitável mediante a sociedade do século XIX, sem emoções que valessem a pena, com a crescente miséria advinda da recente exploração do proletariado, dandis sem introspecção filosófica que só sabem vestir-se elegantemente e mocinhas coquetes leitoras de romances que pensam apenas em se casar bem e estar na moda.

É nessa sociedade que se encontram as personagens do romance mais famoso de Stendhal, ''O vermelho e o negro'' (
Le rouge et le noir), que se presta a ser uma "Crônica de 1830", como se apressa a dizer seu sous-titre.

Julien Sorel, rapaz ambicioso e belo da província, é um alpinista social, mas nem por isso deixa de ser complexo, pois nem o próprio sabe o que sente ou pensa, e, graças à maestria de Stendhal podemos observar esse pathos ao longo de todo o livro, em todas as suas emoções e contradiçoes.

Julien tem um affair com a Mme de Rênal, esposa do prefeito de Verrières, e após desconfianças é obrigado a seguir seu rumo, e vai trabalhar com o Marquês de La Mole, e se vê admirado pela bela Mathilde-Marguerite de La Mole, uma jovem enfastiada com a época em que vive e sonha com os ideais de seus antepassados da Era das Cruzadas, na qual ela via mais heroísmo e motivos para viver. Não vê graça em nenhum cavalheiro da moda, zomba de todos e sente até prazer nisso, acha-os indignos de si, apesar do orgulho de se saber venerada por esses nobres. É obcecada pela história de seu antepassado Boniface de La Mole, amante da rainha Margarida que após ser decapitado, tem sua cabeça beijada e guardada pela rainha.

Julien após muita resistência interna acaba por se apaixonar pela moça, e se tornam amantes, porém o relacionamento tem altos e baixos, devido ao orgulho de ambos e à inconstância e arroubos de loucura da Mlle de La Mole, o que impede a plenitude do amor de ambos. Quando Mathilde se descobre grávida, consegue a muito custo obter permissão do altivo Marquês para se casar, porém após uma carta da Mme de Renal o delatando para o pai de Mathilde, tudo desmorona, e Julien atenta contra a vida da ex-amante que não morre. Na prisão Julien se dá conta de que ama ainda a Mme de Renal, deixando Mathilde com ciúmes. Julien é acusado e recebe pena de morte, por livre vontade, apesar dos esforços de Mathilde. Pelo menos esta pôde saciar sua fantasia de Rainha Margarida, de beijar a cabeça decapitada de seu amante.


Nessa obra desastrosa que desnuda a hipocrisia moral e o tédio do século XIX, talvez tenha sido apenas Mathilde quem conseguiu elevar-se da mediocridade inerente à sua época.